sexta-feira, 1 de março de 2013

Da Paixão

Este texto que está na nossa apresentação "Café com biscoitos e estórias do tempo", é inspirado em "Valsinha", música de Vinicius de Moraes e Chico Buarque. Se pudesse, colocava o Ricardo tocando a Valsinha enquanto cada um de vocês lê o texto!


 No começo, ela tirava o vestido do armário uma vez por semana. Examinava com muito zelo. Não podia ter nenhuma mancha de mofo ou algo parecido naquele vestido de cetim rosa antigo, muito decotado! Se estivesse cheirando a guardado – relavava, repassava e
reengomava. E o vestido voltava para o armário.
No começo ele ficava bem à sua vista. Fora comprado para ser usado e não podia ficar no fundo do armário, como os trapos velhos de usar em casa.
 Com o passar do tempo, o vestido especial que esperava um convite foi indo cada vez mais para sua direita, dando lugar às peças novas de usar no dia a dia até chegar, sem nunca ter tido a sua estréia, ao lado das roupas velhas e não mais usadas. O vestido começava formar pequenos vincos, assim como o rosto da mulher, que cada vez menos se importava em cuidar da espera.
O vestido. Os vincos. Os silêncios.
Às vezes ela sentia muita vontade de romper com aquele silêncio que lhe era insuportável e falar. Mas falar o quê? Para quem? Ele nuca falava. Não, minto! Muitas vezes ele abria a boca: para reclamar, para maldizer a vida, sempre bravo, sempre neurastênico.
   O silêncio e a braveza sempre foram os companheiros daquela casa. E ela achava que a vida era assim mesmo. E toca para frente. Sem música, por que música também não se ouvia naquela casa.
   Mas um dia...
   Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar!
   Quieto como sempre, mas sem a braveza costumeira, sem lista de reclamações e pequenas raivas diárias. A mulher não entendeu. Mas também não perguntou. Estava desconcertada demais com o jeito com que ele olhava para ela. Ela sequer se lembrava deste tipo de olhar, não sabia se era bom ou ruim – não sabia se haveria uma explosão ou uma calmaria. Ele continuou a olhá-la. A mulher se sentiu intimidada, depois sem nenhum controle, seus olhos desceram para o chão, tão tímida ficou e em seguida se sentiu lisonjeada por que achou que aquela maneira de olhar, que ela nunca tinha visto... Ah! O modo como ele estava olhando para ela era um jeito muito, muito mais quente do que ele sempre costumava olhar...
   O homem, que costumava  ignorar a presença da mulher, naquele dia não a deixou sozinha nem um minutinho, e assim, de repente, de uma hora para outra, sem que ela pudesse jamais esperar... ele convidou-a para rodar.
   Um mundo de pensamentos passou por sua cabeça: Por que será que depois de tanto tempo? O que vestir, meu Deus? Será possível que ele esteja mudando? Sapatos altos ou baixos? Meu Deus, que ele esteja mudando! Meias finas? Será que ele ainda...
   E desta maneira atabalhoada, foi que ela se colocou bonita para o homem!
   Procurou o vestido especial, que a esta altura já estava na parede do armário. Sim cheirava a guardado, mas não daria tempo de lavar, então, paciência! Amarrou a fita de gorgurão na cintura, que já não era mais a mesma, mas ainda assim fina, e o decote assentou bem, embora parecesse menos ousado do que na época em que comprou o vestido.
   Estava se sentindo mui linda.
   Quando abriram a porta da frente o homem estava de braços dados com a mulher. Não se usava mais dar os braços daquela maneira, mas ele não percebeu e ela não se importou.
Em frente à casa havia uma praça. O casal andou até lá. Com muita ternura o homem abraçou a mulher. E começaram a se lembrar dos primeiros passos da primeira valsa que dançaram juntos. Firmes estavam, seguros dançavam. Um nos braços do outro valsaram, a princípio vagarosamente, depois mais rápido, mais rápido e mais rápido. E giraram, giraram, giraram, giraram... e dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou. E a felicidade era tanta que toda a cidade se iluminou. E holofotes da cidade desperta iluminaram o rosto da mulher.
   O homem olhou a mulher assim, iluminada, corada de tanto rodar, e teve fome. Muita fome.  A mulher, que nunca tinha preparado nada além de caldos e insossos pratos de cozido, desejou oferecer suas melhores iguarias. O homem então experimentou suas sobrancelhas. E cada um dos olhos da mulher se fechou. Ele beijou seus cílios e a ponta do nariz e o queixo...A mulher ofereceu seu pescoço seu colo, seus ombros. A dobra dos braços os cotovelos. E o homem beijou as palmas de suas mãos e os meios dos dedos e as unhas. Beijou suas costelas, suas ancas, cada vértebra de sua coluna. Recheou sua nuca, o meio dos seios, a barriga. Untou suas coxas, a dobra das pernas, mordeu sua batata, salpicou seu tornozelo. O homem se deliciou com redondos joelhos, umbigos e auréolas. Beijou seus dentes e suas gengivas.
E foram tantos os beijos loucos, tanto os gritos roucos como não se ouvia mais . Que o mundo inteiro compreendeu e o dia amanheceu em paz.


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